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A IRMANDADE

Outubro 8, 2022

Texto publicado originalmente na revista Perspectiva de Setembro de 2022

As pessoas têm medo das mudanças. Eu tenho medo que as coisas nunca mudem”. ~ Mahatma Gandhi

A pandemia, provocada ou não, deixemos essa discussão para quem de direito, entrou nas nossas vidas sem pedir licença. O Mundo parou. Susteve a respiração. Num ápice, vimo-nos privados do nosso dia-à-dia como sempre o conhecemos. A liberdade, esse bem tão precioso e por todos reclamado, foi-nos retirado democraticamente, independentemente da raça, credo ou género. A constituição assim o prevê.

Nestes períodos em que o ser humano é posto à prova e, a história da humanidade encarrega-se de o comprovar, a capacidade que tem de se reinventar vem ao de cima. Quando se fecha uma porta, abre-se uma janela. Cingindo-me a Portugal, assistimos, por exemplo, a um boom do mercado eletrónico. O teletrabalho deixou de ser olhado com desconfiança. Há um fundo de verdade que não pode ser ignorado: uma nova sociedade emergiu. Isso sente-se na vida quotidiana. O pulsar da vida do comum dos mortais alterou-se. Não é melhor, nem pior. Apenas diferente. E se existe aspeto em que o ser humano é fascinante é na sua capacidade de adaptação.

Dei comigo, no pico da pandemia, a ter em abundância algo que muito valorizo: tempo. A privação de uma vida social e o confinamento a meia dúzia de paredes, assim o ditou.

Tentei, dentro do possível, tirar o máximo partido. Entre outras coisas, foram momentos de reflexão. Obviamente, até pela importância e significado, incluí a fotografia nesse exercício. Algumas questões existenciais surgiram. Quem sou na fotografia? Que sentimento quero exprimir e partilhar com a minha fotografia? Que legado gostaria de deixar?

Num primeiro momento não tive a habilidade de retirar conclusões. Senti-me perdido. O tempo, esse seguia o seu caminho, segundo após segundo, minuto após minuto. Tendo sempre no horizonte estas questões que me assolavam e sem as perder de vista, decidi avançar e realizar uma tarefa há muito adiada. Organizar o meu arquivo fotográfico.

Como nos manuais de boas práticas fotográficas, organizei todas as imagens por ano, mês e local. Ao fim de um par de horas e pela primeira vez em muitos anos, tinha finalmente o arquivo fotográfico organizado. Esta nova realidade permitiu viajar ao sabor das minhas imagens. Várias aventuras, vivências e experiências saíram dos corredores da memória. Tempo de flashback!

Regressei ao Taj Mahal. Voltei a ver a muralha da China. Revi os monges de Luang Prabang. Relembrei o fantástico nascer do sol em Angkor Wat. Voltei a caminhar pelos arrozais de Bali. Revi a ponte Estaiada de São Paulo. Contemplei as dunas do Dead Vlei. Fiquei em êxtase! O poder da fotografia é fascinante. Ri e chorei nesses momentos.  As memórias a isso impeliram.

Passados uns dias, menos emotivo e mais racional, revisei novamente o meu arquivo fotográfico. Este exercício permitiu ter um vislumbre de algumas respostas que procurava. A primeira grande ilação retirada foi que efetivamente passei anos a colecionar “postais”. Não há mal nisso. Por sinal e modéstia à parte, alguns que gosto muito. E para que fique claro, sempre que possível, vou continuar a colecioná-los.

Mas, a esta distância temporal de alguns desses ditos “postais”, falta algo. Como confecionar um prato e não adicionar condimentos. Se eu quiser juntar todas essas fotos e criar uma narrativa, iria faltar um elo de ligação. Sabe a pouco. Falta ali alma. Essência, quem sabe. Ou talvez algo maior. A resposta é bem mais simples, porém mais difícil de admitir.

Sou avesso à mudança. Assumo-o, mas mudei! Estou um pouco mais velho. A forma de sentir a fotografia e como me expressar através dela, alterou-se. Todos mudamos. O mundo está em mutação constante a cada segundo. Uma praia será sempre uma praia, assim como uma árvore ou uma montanha. A mensagem a passar quando retrato esses motivos é que mudou. Uma fotografia, isolada, por si só, deixou de ter sentido. Hoje tenho outra consciência, e mais que a ter, é querer tê-la!

É aqui que entra uma palavra ao qual tento dar significado sob a forma de expressão artística através da fotografia: narrativa! E uma narrativa dificilmente se sustenta a si própria apenas e só numa imagem. Quero escrever histórias com luz com um princípio, meio e fim. Quero sentir-me envolvido e criar envolvência a quem procura as minhas narrativas fotográficas. Acima de tudo, quero dar vida a este turbilhão de emoções que sinto de forma revigorada dentro de mim. Quero transformá-lo numa linguagem única através da minha fotografia.

Por muitas viagens que possa fazer ao estrangeiro – e como isso me encanta – dificilmente voltarei a muitos desses países. Regressar ao mesmo local e fotografá-lo vezes sem conta, permite criar uma relação que vai além do mero ato de fotografar. Um comprometimento espiritual é criado, elevando o nível de cumplicidade a uma simbiose única. A partir desse momento, deixa de fazer sentido mostrar imagens soltas sem contexto e uma outra realidade é revelada.

Quem me conhece, sabe que tenho uma relação especial e genuína com o Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina. Há coisas que não se explicam, apenas se sentem.

A cada regresso, o Atlântico sorri-me. As cegonhas acenam-me. As falésias escarpadas dão-me as boas-vindas. A cumplicidade paira no ar. Sinto-me em casa.

Ao percorrer o agora organizado arquivo fotográfico, tropecei, por assim dizer, num conjunto de fotografias desse sul que tanto me encanta. Fotografias que datam de 2013 e 2016. Nunca aquelas imagens, numa perspetiva individual, tinham captado a minha atenção. Resumindo, nenhuma era um “postal”. Esse o verdadeiro motivo pela qual até 2020 permaneceram inócuas. Por fim e ao revê-las, os meus olhos brilharam. Emocionei-me. Naquela época, e já passaram alguns anos, a minha forma de expressão artística era no seu todo diferente. Infelizmente, e faço “mea culpa”, não fui astuto o suficiente para o perceber e por consequência admitir. Dores de crescimento.

Nelas, reconheço uma narrativa. Comunicam entre si. Envolvem-se. Abraçam-se. Há algo que as une e que vai muito além da irmandade de terem sido realizadas no mesmo local. Foi criada uma história que fluí sobre si mesma em que o olhar decifra e revela detalhadamente cada pormenor de um enredo cristalino com princípio, meio e fim. Por certo, haverá um dia que irei querer contar a narrativa de uma forma diferente. Que esse dia chegue e aqui estarei para o receber de braços abertos e por certo estarei mais recetivo à mudança. Enquanto esse momento não chega, quero aproveitar e desfrutar o presente.

No final, e apesar de algumas questões continuarem sem resposta, fiquei de coração cheio. Rejubilei pela narrativa e acima de tudo por mim. Desta reflexão, um novo fotógrafo emergiu. Inusitadamente.