Texto publicado originalmente no nº 8 da revista Perspetiva
“Tornou-se aparentemente óbvio, que a nossa tecnologia excedeu a nossa humanidade” – Albert Einstein
1826 foi um ano marcante para o mundo das artes, sobretudo as visuais. Esse ano e os seguintes foram anos de polémica e controvérsia. Muita, a bem da verdade. Esse longínquo ano, assinala o surgimento da fotografia. Essa forma única de arte visual via a luz do dia e em poucos anos iria revolucionar o mundo. Esse reconhecimento, porém, demorou a surgir.
Os primeiros tempos foram, acima de tudo, de desconfiança. Vamos por partes. Com este acontecimento, o mundo das artes visuais, com a pintura à cabeça, via-se no epicentro de um terramoto. Muitos arautos da desgraça vaticinaram o princípio do seu fim. Seria de facto a fotografia uma ameaça latente à pintura? A resposta não tardaria a chegar.
Os principais pensadores da época, entre eles Baudelaire, um ícone da cultura francesa, não teve pejo em considerar a fotografia como “um refúgio para pintores frustrados”. A máquina fotográfica, é, na sua opinião, uma extensão do olho ou da memória, mas nunca da imaginação e da criatividade. O próprio, vai um pouco mais longe. Para ele a fotografia não é vista como uma forma de expressão artística, mas sim, algo puramente técnico. Seria Baudelaire a face visível de uma determinada aristocracia ligada ao mundo das artes visuais, adversa às novas tecnologias?
Ao invés do que muitos profetizaram, a fotografia, aliada a outros fatores, teve o condão de originar uma profunda reflexão nos pintores da época, sobretudo em França. Desse momento de introspeção da classe artística, emerge, na chamada Belle Époque, um movimento que iria revolucionar o mundo das artes enquanto veículo de expressão artística. O impressionismo. Após um período de turbulência, a humanidade assiste, por fim, ao nascimento de um dos movimentos mais marcantes na história da pintura e das artes em geral.
Este movimento, abolicionista relativamente às regras de pintura vigentes à época, é antagónico face ao neoclassicismo, realismo e romantismo. A abordagem impressionista, ao romper com o passado, permite ao artista, retratar a sua própria interpretação da realidade. Há um despertar da consciência para o Eu desprovido de dogmas académicos, sob a forma de afirmação artística e cultural. É a vitória da liberdade de expressão na pintura e que contagiaria outras formas de arte! Manet disse: «Eu pinto aquilo que eu vejo, e não aquilo que para os outros é agradável ver».
O impressionismo foi precursor de uma nova era, no entanto, e sobretudo na Europa, não faltaram críticas a esta nova forma de sentir e respirar a arte. A fotografia, à época, a dar os primeiros passos, não era mais que o retrato do real, em contra círculo com as novas tendências. Rapidamente encontrou o seu espaço e acima de tudo a sua valorização artística.
Aos dias de hoje, fotografia e pintura cruzam em algumas áreas a linha que as separa. Muitos fotógrafos, através da evolução da fotografia e com o aparecimento de novas técnicas, utilizam a fotografia sob uma forma que muito se assemelha à pintura.
Desde 1872 que no Colorado, Estados Unidos, se realiza a Colorado State Fair, uma feira de arte. A edição de 2022 fica marcada pela vitória de Jason Allen na categoria de “Artes Digitais”. Dito desta forma e desprovida de maior detalhe, esta notícia nada tem de excecional e acredito que muitos dos que leem estas linhas, tal como eu, nunca ouviram falar deste autor. Mas, convém reter, é um nome que fica para a história. Com esta vitória e de forma inusitada, Jason Allen abriu a caixa de pandora.
A verdade é que esta notícia caiu que nem uma bomba no meio artístico mundial de repercussões incalculáveis. A razão é muito simples. A imagem vencedora, ainda que na categoria “Artes Digitais”, não foi criada em nenhum software de edição de imagem, tão típico nesta categoria. Ao invés, a sua criação fica-se a dever a um programa de inteligência artificial.
Para quem nunca ouviu falar em Inteligência Artificial nas artes e neste caso em concreto na produção de imagens, aqui vai uma breve explicação.
O Midjourney, o DALL-E ou o Stable Diffusion, são programas de inteligência artificial. O modo de utilização é particularmente simples. Através de um conjunto de palavras-chave inseridas e após alguns minutos de espera (não muitos), tem-se como resultado uma imagem única.
O resultado é obtido, e aqui tem havido imensa polémica por questões de direitos de autor, a partir de imagens disponíveis na internet que coincidam com as palavras-chave introduzidas. A título de exemplo. Escrever na linha de comando palavras-chave como Lisboa e Van Gogh, o resultado será uma imagem de Lisboa ao estilo da pintura de Van Gogh. Fácil de imaginar. Fácil de criar e…fácil de produzir algo capaz de ganhar concursos internacionais.
Este acontecimento, que já fez correr muita tinta, promete não ficar por aqui. Para apimentar um pouco mais o tema, à poucos dias foi anunciada a primeira fotografia gerada por Inteligência Artificial a vencer um concurso de fotografia. O vencedor, ao concorrer a uma das chamadas categorias tradicionais, ludibriou o júri, que pensava tratar-se de uma imagem obtida por drone.
Não há como esconder! Estamos no início de um novo caminho. Na minha opinião, e no imediato, apenas vislumbramos a ponta do iceberg. A inovação causa desconforto e, à luz destes acontecimentos, o óbito das artes foi mais uma vez preconizado. Muitos não reconhecem o “produto final” de Inteligência Artificial como arte. Lanço a seguinte questão: “Numa reflexão mais aprofundada e de contornos filosóficos, o próprio conceito de arte gera consenso?”.
Eu prefiro entender que estamos perante uma nova forma de afirmação e expressão artística. Amada ou odiada, a Inteligência Artificial veio para ficar e não apenas no mundo das artes. Não vale a pena colocar a cabeça na areia e fingir que nada se passa. Um pouco de atenção e facilmente se percebe a influência e importância da Inteligência Artificial nas mais diversas áreas da sociedade moderna. O mundo está em mutação constante. A cada dia que passa, a tecnologia avança de forma impiedosa e, entra nosso quotidiano sem pedir licença. Todas as áreas da nossa sociedade, ainda que a ritmos diferentes, são envolvidas neste processo pacifico de “invasão”. As artes não são exceção. O ruído em volta deste tema, é apenas o reflexo de dores de crescimento perante uma “suposta” nova ameaça.
O aparecimento da fotografia gerou controvérsia. Muitos previram o fim dos livros com o aparecimento dos jornais. O fim da rádio, foi declarado com o aparecimento da televisão. E por aqui me fico no que a exemplos diz respeito. Muitos mais haveria. A humanidade tem a sua costela de “Velho do Restelo”, tão bem descrita por Camões na sua epopeia de glorificação dos descobrimentos marítimos portugueses.
A capacidade de ferramentas de Inteligência Artificial em gerar algo que identificamos como arte é fascinante. E com uma rapidez assinalável. O principal entrave e que prevejo como o grande desafio nos próximos tempos, é a aceitação cultural dessa mesma arte produzida. Nas pesquisas realizadas na Internet na procura de imagens criadas a partir de Inteligência Artificial, as encontradas, facilmente se associam ao Surrealismo. Deixo a seguinte questão: Deverá negar-se e reduzir à insignificância essas imagens e a sua beleza estética sob o pretexto de terem sido criadas a partir de algo não humano?
Não quero assumir uma postura de altivez como Baudelaire fez perante o surgimento da fotografia. Considero a Inteligência Artificial uma forma de criação de arte. Que a mesma permita expandir e alargar horizontes. É a inevitabilidade da evolução tecnológica. Mais uma vez, estamos perante o cenário em que a definição de arte e do próprio artista é questionada. Assiste-se a mais uma revolução na arte contemporânea. No dia que esta tempestade passar, e estou certo de que passará, a bonança por fim chegará, e consigo uma nova vaga de artistas não convencionais emergirá e no final, como sempre, o grande vencedor será a própria arte. Como referido anteriormente, a caixa de pandora foi aberta!