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O LABIRINTO DA CRIATIVIDADE

Julho 31, 2023

“É de todos conhecidos, porém, que a enorme carga de tradição, hábitos e costumes que ocupa a maior parte do nosso cérebro lastram sem piedade as ideias mais brilhantes e inovadoras de que a parte restante ainda é capaz…” – José Saramago

No mundo das artes, a criatividade é o processo de expressão individual. É uma habilidade única, que associada à intuição, imaginação e a uma linha de pensamento divergente, conduz o artista no sentido, ou pelo menos à tentativa, de buscar algo singular que emocione e cative os demais com a sua criação. É o Santo Graal da arte!

Porém, e como um labirinto, a criatividade pode conduzir a becos sem saída e a questões existenciais, exigindo ao artista, o experimentar de diferentes abordagens e soluções até encontrar o ponto de fuga desejado e assim criar uma determinada experiência estética. Dar corpo e vida ao processo criativo na busca da inovação, é mais complexo do que parece à primeira vista. Raramente o acaso é a chave do sucesso. Não existem fórmulas mágicas, em contraponto à ciência, assente em princípios factuais. Na arte, o segredo está dentro de cada um.    

País Basco, Espanha

Todo aquele que produz arte de forma contínua, em algum momento do seu percurso, passou por períodos em que a turbulência da incerteza e da dúvida o tomou de assalto e por consequência a sua criatividade e capacidade de expressão artística. Imaginar grandes nomes da arte, como Monet ou Rodin, para citar apenas alguns, a viver nos seus tempos áureos, uma fase de menor esplendor criativo, é doloroso. Por certo que os tiveram. É o emocional. Na verdade, é o que nos diferencia, de um software assente em um qualquer algoritmo, capaz de gerar arte de forma massiva à distância de um clique, a partir de um conjunto de palavras digitado. Num software não existem questões emocionais.

Esta capacidade, a de gerar arte, intrínseca ao ser humano, pelo menos até ao surgimento da Inteligência Artificial, não é linear, pelo contrário. A produção de algo entendido como arte e o próprio processo criativo de cada um está intrinsecamente associado a vários fatores. As condições emocionais do Eu numa determinada fase da vida. As tensões e realidades sociais do tempo e do espaço onde essa arte é produzida e onde o próprio artista está inserido, sem esquecer a sua vida sentimental, tem influência. Como sem ela nada se realiza, temos de juntar a paixão. Esse fator que, por um lado tem o condão de mover montanhas, a falta dele, conduz a um emaranhado de oscilações emocionais. O céu apenas é tocado, quando se abraça algo de forma apaixonada. É o combustível que incendeia o que nos rodeia e que faz enfrentar os medos da própria existência. As borboletas no estômago aparecem quando há paixão por algo.

Há uns anos, algures em 2012, fui invadido por aquilo que classifiquei na época como uma “crise emocional”, que se refletia, sobretudo, na minha criatividade fotográfica. Racionalmente não havia uma explicação para o sucedido. Tinha o equipamento que queria. Dominava a técnica fotográfica. Podia fazer as saídas fotográficas que e onde quisesse. Simplesmente, como o anúncio do chocolate Ferrero Rocher, faltava algo. Faltavam igualmente respostas a perguntas pertinentes…

Teria perdido o interesse pela fotografia? O lume da paixão pela fotografia teria ficado demasiado brando? Terei pensado que por dominar meia dúzia de técnicas fotográficas nada mais haveria para aprender e descobrir? Senti na pele a amargura, a frustração e a falta de habilidade em produzir algo, que aos meus olhos fizesse sentido. Como qualquer ser humano, rapidamente criei fantasmas. Esses seres omnipresentes, em pouco tempo se agigantaram e com uma força desmedida ganharam asas, levantando o véu da suspeita. Fui impelido a navegar num dos mares mais tenebrosos que existe: o da insegurança. Caí do pedestal onde julgava estar, imune a tudo e a todos.

Bardenas Reales, Espanha

O segredo está exatamente na força interior de entender as razões e aceitar um momento de menor fulgor, neste caso criativo, sem desespero e encontrar ferramentas que ajudem a ultrapassar estes bloqueios. Todos os labirintos têm uma saída. A escrita ajuda. Pelo menos a mim. Foi um bom princípio para enfrentar o meu Eu. Sem rodeios. Escrevi, à data, tudo aquilo que me poderia estar a afetar. Não é um exercício fácil, mas ao fazê-lo, veio permitir uma análise mais criteriosa dos pontos identificados e assim dissecar e refletir um a um e encontrar respostas. Apenas existe o compromisso, nem sempre fácil, de sermos transparentes connosco mesmos.

Ao escrever num pedaço de papel algumas das minhas preocupações, sobre os motivos que estariam a influenciar esta fase, o primeiro que escrevi resumia-se a uma pequena palavra composta por 4 letras: foco! Manter o foco no que se faz é fundamental. Sem me aperceber, andava disperso. Talvez não tenha uma relação direta, mas a rotina da vida quotidiana do comum dos mortais – artistas incluídos – tem o condão de conduzir para um caminho de facilitismo, marasmo e passividade. Aceitar o adquirido, é mais fácil que procurar o desconhecido.

Emoção. Também estava em falta. Não há arte sem emoção. E por fim a paixão. Onde andaria a paixão que sempre nutri pela fotografia? Creio não ter sabido cuidar dela. De manter a chama acesa. Como um dia Mandela proferiu, “A maior glória em viver não está em jamais cair, mas em nos levantar cada vez que caímos.”.

Após navegar pelo mar da incerteza, tinha chegado o momento de viragem e de me reencontrar com esta velha paixão, e acima de tudo, comigo mesmo. Tomei essa consciência e encontrei refúgio onde menos esperava. Fora do “meu” mundo na fotografia, porém, sem nunca o perder de vista. Comecei por ler livros e artigos que não estivessem relacionados com fotografia. Em boa hora o fiz. Assim Saramago pôde entrar na minha vida. Nunca esquecerei o fascínio que se apoderou de mim ao ler as primeiras linhas de “Intermitências da Morte”.

Zambujeira do Mar, Portugal

Conheci novas pessoas, com interesses completamente antagónicos aos meus. Fiquei a conhecer outros pontos de vista sobre a vida e a própria arte em si. Visitei várias exposições de arte. Fique deslumbrado com a obra de Joana Vasconcelos e a sua capacidade criativa. Nos habituais encontros com amigos da fotografia, procurei desviar os assuntos do tema que nos unia. Afinal, amigos de longa data e pouco sabíamos uns dos outros fora do espectro da fotografia. Belíssimas surpresas se revelaram. Com alguns, a amizade elevou-se a outro patamar.

Revisitei alguns dos locais, outrora visitados na correria de uma saída fotográfica. Atrevi-me, e muitos desses reencontros foram sem a companhia da máquina fotográfica. Pude, na praia da Ursa, finalmente sentir a bravura do Atlântico em mim. Ousei mergulhar nas suas águas. Na costa alentejana, conversei horas a fio com pescadores que se cruzavam no meu caminho durante as caminhadas pela orla costeira com histórias únicas das suas vivências e experiências por aquelas terras de mar bravio.

Na Estrela, aquela que dá nome à Serra, senti finalmente o seu frio gélido a atravessar-me o corpo. Aprendi a contemplar. Aprendi a saborear os momentos. Todas estas pequenas mudanças, em conjunto, permitiram o reformular de conceitos que tinha enraizados em mim. Absorvi todo esse novo mundo em meu redor. O reerguer foi lento, mas sólido e em crescendo. Como que uma redescoberta. Uma segunda oportunidade perante a arte. Voltei a sentir a adrenalina de querer fotografar. O nervoso miudinho, aquele que apenas nós – fotógrafos – sentimos, voltou a ecoar em mim. A emoção e a paixão em fotografar regressaram. A partir desse momento, a criatividade voltou a fluir. Regressou, na surdina, com a mesma naturalidade que um dia partiu. O mundo visto através da minha máquina fotográfica voltou a fazer sentido. E o caro leitor, tem estimulado a sua criatividade ultimamente?