Texto publicado originalmente no nº 11 da Revista Perspetiva
“Adoramos a perfeição, porque não a podemos ter; repugná-la-íamos se a tivéssemos. O perfeito é o desumano porque o humano é imperfeito.” Fernando Pessoa
Mozart ou Beethoven?
Ainda que esteja intrínseco na génese humana este tipo de questões, não são de todo justas nem tão pouco honestas. No seu todo, na arte, cada artista tem a sua própria singularidade, as suas influências e o seu contexto. Sendo uma forma de expressão, complexa por sinal, fazer comparações é no mínimo reduzir a cinzas todo o processo criativo de algo identificado como arte e minimizar o próprio artista com comparações pouco benéficas.
Para os propósitos deste raciocínio irei continuar com esta comparação. Utilizei estes dois compositores, que por sinal muito me dizem, como poderia ter lançado a mesma questão com outros artistas em outras áreas da arte que não a música. São dois compositores cuja obra conheço suficientemente bem para admirar e respeitar cada um deles.
Mozart abriu-me, por assim dizer, as portas da música clássica. Para um leigo como eu, a sua música tocou-me. A melodia imposta em grande parte da sua obra não me deixa indiferente, assim como a sua suavidade e harmonia que chega a roçar o perfeito. Se a perfeição existe na música clássica, foi alcançada por Mozart.
Antes de continuar, lanço a seguinte questão: O que é a perfeição, seja na arte ou em outra área?
Continuando. Ao escutar as suas composições, Mozart desperta em mim uma sensação de bem-estar. Imagino-me em plena primavera, num dia solarengo, deitado num jardim repleto de flores. O sol quente ilumina-me o rosto enquanto fito o céu repleto de estorninhos com os seus estonteantes movimentos ondulantes. Absorvo os odores que emanam da mãe natureza, tão típicos nessa estação do ano. Que paz e leveza de espírito. O céu foi tocado.
Beethoven é, na sua essência, musicalmente falando, o oposto de Mozart. As suas composições são mais turbulentas. Na sua obra não vislumbro a melodia e harmonia do seu homologo austríaco. Tão pouco me soa a algo imaculado e que aos meus ouvidos soe a perfeito. Há uma inquietude latente que paira no ar. O meu imaginário transporta-me para o alto mar, navegando num frágil veleiro, rodeado de enormes vagas de ondas, sem saber muito bem qual será o desfecho. As emoções estão mais à flor da pele e a incerteza paira no ar. A sensação de perfeição desvanece-se quando escuto a sua música.
Por definição, perfeição significa algo como “condição ou estado do que não apresenta falhas, incorreções ou defeitos”. Por seu lado, o significado de imperfeição é “a falta de perfeição, ou seja, a presença de características, elementos ou qualidades que não se enquadram num padrão ideal”.
Escusado será referir que estamos a falar de dois conceitos abstratos, porém esta dicotomia entre perfeição e imperfeição é, no fundo, o principal alimento do mundo das artes. O artista procura maioritariamente a perfeição, ainda que com a evolução do próprio comece a surgir a ideia de ser algo inatingível. No entanto, é essa busca quase vã pela dita perfeição que tem permitido a arte evoluir ao longo dos anos. Se essa evolução é em direção à perfeição, cabe a cada um de nós argumentar, uma vez que estamos a falar de conceitos abstratos. A própria vivência e existência de quem cria arte é marcada pelas falhas inerentes ao ser humano. Convém relembrar que o conceito de perfeição, no mundo real e não no teórico, não é tão lato como a descrição encontrada no dicionário. Na verdade, e na arte em concreto, não é mais que um conjunto de regras, ideais e convenções que ditam a “perfeição”. Será a perfeição como a conhecemos, assente num conjunto de regras e pressupostos, um conceito castrador para a expressão artística?
Voltando ao tema dos dois compositores. Tenho uma certa predileção pela música de Beethoven. Esta preferência, chamemos-lhe assim, aos meus olhos não deixa de ser contraditória. De acordo com a minha perceção, Mozart, nesta sã disputa por mim trazida a estas linhas, é quem roça a perfeição. Eu sou humano e como tal, apesar da incessante procura pela perfeição, a imperfeição nas artes pode e deve ser vista e entendida como uma representação da própria condição humana. Um reflexo de quem nós somos e da nossa própria essência. Ninguém ou nada é perfeito, até que nos apaixonemos, por alguém ou por algo. Eu apaixonei-me pela música de Beethoven e é precisamente essa paixão que me faz ter esta ligeira inclinação por aquilo que considero ser menos perfeito. A música de Mozart deixa-me, por assim dizer, satisfeito. Tenho a sensação de estar saciado. Beethoven não me transmite esta sensação, pelo contrário.
De um ponto de vista meramente filosófico penso que a “perfeição”, para o ser humano, é um apaziguador de emoções. A “imperfeição”, por seu lado, é associada a autenticidade e funciona como um catalisador de emoções fortemente genuínas. A arte, em toda a sua latitude, não é mais do que uma extensão dessa imperfeição. Aquilo considerado como “não perfeito”, em mim, tem o condão de me fazer refletir.
Afinal o que procuramos? A perfeição ou o aprimorar da imperfeição?
Confesso que falar de “perfeição” e “imperfeição” de forma leviana, deixa me irrequieto, como se fosse algo mensurável, quando na verdade é tão abstrato, que varia de individuo para indivíduo. A busca pela perfeição é a meu ver absurda e pode funcionar como um elemento castrador no momento da criação artística.
A mundialmente famosa série “Nenúfares”, de Monet, é considerada uma das suas obras-primas. Esta série é igualmente um exemplo de como o pintor captou a perfeição na imperfeição. Só de ler esta frase, fico com pele de galinha.
Pinceladas não detalhadas e visão subjetiva dos elementos e formas são algumas das “imperfeições” encontradas nesta série do pintor francês. Serão efetivamente imperfeições, ou apenas o ir em sentido inverso a regras convencionais existentes na arte, neste caso na pintura, colocando de parte conceitos enraizados?
Mesmo com estas ditas “imperfeições”, é uma obra aclamada! Teria esta série de pinturas o mesmo impacto se fosse considerada “perfeita”, com uma visão objetiva dos elementos e formas, com pinceladas bem definidas? Mais perto da tal “perfeição”, mais longe da aclamação! As regras da “perfeição” foram quebradas por Monet de forma ousada e que, no fundo, são uma das imagens de marca do impressionismo.
É a subjetividade patente nesta sua obra que nos faz olhar, apreciar, admirar e pensar o porquê das suas opções. O ser humano é imperfeito e cada artista tem o poder e a liberdade de fazer a sua própria interpretação da imperfeição. Monet, como tantos outros, retratou na perfeição a imperfeição da sua própria interpretação artística de forma disruptiva com o que eram os valores académicos da pintura à época.
Afinal, existe perfeição na imperfeição?
Afirmo que sim. E como é bela essa imperfeição tão perfeita. A bem da verdade, existe uma forma de perfeição intrínseca nas características imperfeitas ou únicas de uma obra de arte. Em vez da incessante procura pela perfeição, idealizada e estereotipada, é precisamente encontrada uma beleza e um significado profundo na imperfeição.
Ao afirmar que determinado artista roça o perfeito não estou a fazer mais que emitir o que identifico como perfeição, mesmo quando me refiro a artistas conceituados e aclamados. Por certo que muitos dos que leem estas linhas não se reveem na obra de Mozart ou Beethoven, ou podem inclusivamente discordar de eu considerar a obra de Mozart mais perfeita que a de Beethoven. Um diálogo deste tipo teria obrigatoriamente de passar pelo refinamento do próprio conceito de “perfeição”.
A inovação que se tem assistido nas artes ao longo dos séculos está intrinsecamente ligada com a imperfeição reconhecida no ser humano. A procura incessante pela inovação artística surge da necessidade em explorar novas formas de expressão, experimentação e superação de limitações. Aceitar a imperfeição na arte é meio caminho andado para a libertação de dogmas implantados em busca da liberdade de expressão, mesmo que o resultado esteja longe do perfeito.
A perfeição na imperfeição é uma caminhada constante que, a meu ver, tem como objetivo final, não a perfeição, mas sim a própria evolução da arte. Qualquer amante de arte, ao admirar pinturas com pinceladas não detalhadas, esculturas com formas únicas ou músicas com acordes fora do comum, não está mais que a celebrar a perfeição da imperfeição no ser humano.