Texto publicado originalmente na coluna Convergências da revista de fotografia .Perspetiva, nº 12
“A arte é tão simples! Como a alegria, a esperança e a amargura.” – Vergílio Ferreira
No seu livro, “O casamento do céu e do inferno”, o poeta britânico William Blake escreveu, “Se as portas da perceção estivessem abertas, tudo apareceria para o homem tal como é: infinito”.
Anos mais tarde, esta passagem do livro de Blake, foi de certa forma imortalizada por James Douglas Morrison, vulgo Jim Morrison, quando se inspirou nela para dar nome à mítica banda de rock, da qual sou fã confesso – The Doors – que fez furor na segunda metade da década de 60 do século passado.
Este excerto do livro acima referido é um convite a pensar e refletir sobre as perceções que o ser humano tem daquilo que o rodeia. Essas mesmo, que são moldadas por um conjunto de fatores bloqueantes que não permitem ver um mundo diferente, como ele realmente é, talvez mais puro e cristalino. Fico-me por esta dedução…efetivamente, não imagino o mundo desprovido de influências.
Blake, nesta frase, refere-se, ainda que metaforicamente, aos sentidos do ser humano. Sentidos esses que no momento da criação artística têm uma importância transcendente. O lado sensorial do ser humano desempenha um papel fundamental e determinante nesse momento sublime. É o combustível que incendeia e alimenta a ânsia do artista em materializar e dar forma ao que vai no seu âmago.
A arte envolve, frequentemente, expressões, sensações, emoções e experiências humanas. O artista depende muito dos sentidos para criar e comunicar a sua visão. Num sentido mais lato, o entendimento que cada um tem da definição da própria arte, influencia a criação artística. Neste raciocínio, não se pode ignorar a abstração do tema, ou não fosse a arte, uma tentativa de dar forma ao intangível, de expressar o inexprimível. Para o artista o paradigma é muito simples, se eu perceciono, logo exprimo!
Sempre me questionei sobre algo difícil de expressar e que passo a partilhar, uma vez que está intimamente ligado com a perceção. O que faz com que um artista se decida por uma determinada obra no momento de criar algo, em detrimento de outra? Qual ou quais são os fatores decisivos e as suas motivações?
É um tema complexo e sem uma resposta linear. A perceção do mundo envolvente e como é processada, varia de individuo para individuo. O criador de arte encontra-se exposto a tantos fatores, externos e internos, sem ter muitas vezes essa noção, ainda que, no seu palco de atuação, acredite piamente que é único e desprovido de influências. De certa forma e à sua maneira, cada um, efetivamente, consegue essa autenticidade de forma resiliente. No entanto, não se pode ser naif e acreditar que pelo meio não existe um vastíssimo leque de influências.
Aprofundando um pouco mais este assunto, um pintor, um escritor, um músico ou um escultor, a título de exemplo, tem a possibilidade de refazer a sua obra e de a recomeçar sempre que, a partir de determinado ponto, esta não segue o caminho desejado ou idealizado. Quando os sentidos não estão alinhados, e frequentemente essa situação acontece, assiste-se, por parte deste, a um novo começo. Entre idealizar e efetivar uma obra, de facto, pode haver um hiato de anos dando lugar a vários recomeços e, no momento certo, tudo fará sentido. Será este desalinhamento um problema de perceção no momento que antecede a criação?
Transportando este exercício para a fotografia, e apesar de também haver espaço para o recomeço, o tema é um pouco mais pertinente. A fotografia é, maioritariamente, o captar de momentos efémeros e fugazes que ocorrem num determinado espaço temporal, com uma margem de erro reduzida e no qual decisões, importantes por sinal, têm de ser tomadas em frações de segundo. Na fotografia, a narrativa tem um preço alto a pagar e todos os momentos são irrepetíveis…
A fotografia, a forma de expressão artística de que estou mais próximo e que gosto de pensar e esmiuçar, frequentemente reúno com amigos em amena cavaqueira para debater algumas questões existenciais sobre tudo o que envolve o processo criativo de um fotógrafo. Permanentemente, nestas animadas conversas, são muitas as perguntas levantadas em torno do momento da criação artística.
Qual o verdadeiro motivo para um fotógrafo questionar permanentemente as suas decisões, seja em estúdio, na natureza ou no meio de uma manifestação pública? Quais as verdadeiras razões, a título de exemplo, para compor uma imagem com um determinado conjunto de elementos em detrimento de outros? Qual o fundamento para criar uma narrativa com imagens mais artísticas em prol de uma narrativa com imagens mais documentais e assim mais próximas do real? Afinal, porque existem estas dúvidas no momento da tomada de decisão artística? Haver um cunho pessoal, uma tendência a seguir e uma imagem de marca do próprio autor, não justifica tudo. Há, forçosamente, o lado irracional, aquele para o qual não existe uma justificação científica.
Estas questões continuariam a ser colocadas se as ditas “portas da perceção” estivessem abertas, sem estigmas, condicionalismos e influências? Seria tudo tão perfeito, que toda a arte produzida seria excecional e sem questões existenciais? Será esse o objetivo maior dos artistas? É o desejado para os apreciadores de arte, algo tão perfeito que não fosse questionável e assim unanimemente aceite por todos? Não perderia a arte o seu encanto e a sua beleza tão peculiar?
Parece-me que um dos maiores pontos de atração na arte não são as obras perfeitas, pelo contrário, e se se juntar a subjetividade inerente à própria arte, de quem a produz e de quem a admira, estamos perante o motivo de ser algo tão belo, encantador e apaixonante.
Numa nota meramente pessoal, cada vez mais na minha arte gosto de ser provocador e obrigar quem vê as minhas imagens a questionar as minhas opções ou inclusive o que tem diante dos seus olhos. Longe vão os tempos do “what you see is what you get”.
Tenho a certeza que no dia que partir não terei realizado a fotografia perfeita, se é que isso existe, longe disso, mas terei em todos os momentos e com toda a minha força e convicção aprimorado a minha imperfeição enquanto ser humano, e sendo a arte um reflexo da condição humana, subsequentemente, o meu EU enquanto artista.
É tão subjetivo pensar nisto que pode inclusive ser patético. Gosto de pensar na arte, sobretudo neste aspeto fulcral que é o momento da criação artística. É a sua subjetividade que precisamente me atrai. O tornar um sentimento, uma emoção e visão em algo palpável é para mim fascinante. Estas reflexões, fazem o artista crescer e amadurecer, mesmo não sendo fácil encontrar respostas que satisfaçam.
A psicologia, neste ponto da decisão do momento, ajuda a encontrar algumas respostas, nomeadamente a psicologia da decisão. Esta variante da psicologia tradicional, defende que as tomadas de decisão, não apenas na arte, estão intrinsecamente ligadas às emoções do ser humano. Os altos e baixos emocionais pelos quais qualquer ser humano se depara, influenciam o tal momento de decisão.
Interessante do ponto de vista comportamental e não deixo de me questionar. Quantas decisões da vida pessoal ou profissional ficam em “banho-maria” porque a incerteza prevalece? Pelo menos, no momento de dar corpo e alma à sua visão, o fotógrafo não deixa a incerteza sair vitoriosa. Vê-se compelido a pressionar o botão disparador da sua máquina fotográfica e numa fração de segundos, entre o abrir e o fechar do obturador, o momento fica eternizado, mesmo que não seja o mais desejado. Sempre defendi “antes viver” com ações e decisões tomadas do que uma vida atormentada com a incerteza do que poderia ter feito.
Mesmo que não seja absolutamente verdade, que algum dia as ditas “portas da perceção” estarão completamente abertas e infinitas, acredito que todo e qualquer artista estará mais perto da sua afirmação, enquanto criador e ser humano, ao escolher o caminho da resiliência e se abstrair ao máximo de influências. Olhar para si e para o seu interior e aceitar o que por lá de mais puro e verdadeiro existe. Poderá não ser o melhor artista do mundo, nem tão pouco o mais reconhecido ou aclamado, mas certamente estará em paz de espírito consigo mesmo ao seguir os seus princípios e convicções, sem nunca fechar a porta a uma melhoria contínua no seu processo criativo.
Este caminho fará com que o entendimento da arte, mesmo com toda a sua abstração, apareça mais vasto e que cada ato de criação tenda a transcender a própria condição humana. A manifestação artística será por certo mais marcante a cada imagem, música, pintura, escultura ou a qualquer outra forma de expressão artística. Esta abordagem, nem sempre fácil de alcançar, interceta a relação entre perceção e arte, num registo que se deseja único e intemporal e, para tal, é necessário ver o mundo como ele verdadeiramente é…infinito!