“O progresso não é senão a realização das utopias” ~ Oscar Wilde
Os primeiros dias de janeiro deste novo ano que agora se inicia têm sido particularmente chuvosos. As temperaturas continuam bastante baixas. Não há drama, ou não estivéssemos em pleno inverno. Apesar das alterações climatéricas que se têm verificado nos últimos anos, este continua rigoroso.
É domingo. A chuva cai abundantemente de um céu completamente coberto de um cinza monocórdico, tornando o dia ainda mais melancólico e triste. Enquanto a máquina do café aquece, observo a chuva que insistentemente cai. A minha atenção é direcionada para pequenas gotículas de água que escorrem pela janela. Fixamente, observo o seu movimento errático a partir do momento que beijam o vidro e escorrem janela abaixo até encontrarem o seu destino no parapeito da janela. Os planos para esse domingo estavam comprometidos. O mau tempo não prometia dar tréguas, contrariando as previsões do dia anterior. A saída fotográfica planeada para as praias da Costa da Caparica tinha de ser adiada.
Enquanto tomo café, penso em alternativas. A chuva, resiliente, cai ainda com mais força. Lembrei-me de que há algum tempo que tenho em mente revisitar alguns filmes. Sempre gostei de cinema e obviamente, por diversas razões, há filmes que me marcaram, em diferentes momentos da vida. Parecia-me uma boa opção face às vicissitudes da meteorologia.
Dirijo-me ao sótão, local onde repousam religiosamente todos os meus DVD. O avanço tecnológico há muito que deixou de dar protagonismo a este formato. Estamos na era do streaming, porém, esta visita ao sótão não foi inocente. Apesar de não ir ver neste formato o(s) filme(s) desejado(s), a forma como estão organizados facilmente me permitiu chegar a uma espécie de “best of”. “Donnie Darko”, “O inadaptado”, “A mansão de Fermat”, entre outros, ali estavam eles, moribundos e envoltos numa suave camada de pó, reveladora da sua inutilidade em contraste com idos tempos.
Anoto alguns nomes. E é quando de repente me deparo com o filme que de imediato passou a encabeçar o topo da lista de prioridades a (re)ver neste bucólico domingo – “Queres Ser John Malkovich?”. Não me lembrava deste filme, mas foi, à época, marcante, e ao vê-lo percebi que o queria rever o quanto antes. Que viagem é este filme. A fantasia, o sarcasmo e as mensagens subliminares sobre a sociedade onde vivemos e daquilo que o ser humano é capaz, são absolutamente fantásticas.
Comecei a divagar. Ocorreu-me de imediato como seria se pudesse entrar na mente de alguém, ver o mundo através dos seus olhos e poder sentir e experienciar todas as suas sensações, emoções e sentimentos. Fui um pouco mais longe. E se além deste irromper na privacidade alheia, eu o pudesse fazer sem que a outra pessoa o soubesse? Esta invasão seria ainda mais enriquecedora, pois o invadido, não sabendo, o seu comportamento não sofreria o desvio natural que existe quando o ser humano sabe que está a ser observado, e, por conseguinte, avaliado e até julgado pelas suas ações e atitudes.
Pensar numa situação destas, por muito que em várias ocasiões ao longo da minha vida o tenha desejado, causa desconforto. Do ponto de vista da psicanálise, Freud iria amar essa possibilidade. Fechando esta breve introdução e para aqueles que nunca viram o filme, recomendo vivamente que o façam. Terminado o filme, sinto uma terrível necessidade de escrever. Pareceu-me óbvio que os planos idealizados para este domingo iriam ser de novo alterados. Não haveria espaço para ver mais filmes. Primeiro pela meteorologia, depois alimentado por esta vontade emergente de dar corpo sob a forma de escrita às minhas ideias. Os planos, mesmo os mais minuciosos, sofrem desvios. Assim me diz a minha experiência profissional.
A coluna Convergências na .Perspetiva traz-me a responsabilidade de antecipar ao máximo o assunto a aflorar na edição seguinte. Não tinha tempo a perder e sobretudo não queria esquecer as ideias que fervilhavam em mim. O que vou escrever, pensei? Há alturas que fico na dúvida sobre o tema a levar à próxima edição da revista. Talvez ande a divagar em demasia, pensei, mas desta vez não hesitei. Influenciado pela trama alucinante do filme, ocorreu-me a ideia de dar vida a um texto com o título, “Queres ser o sensor de uma máquina fotográfica?”.
Porque não escrever algo ficcional para a .Perspetiva? O caro leitor entende agora o motivo da vontade repentina em escrever? É um desafio escrever sobre algo que é meramente ficção. Colocando para quem de direito as questões técnicas sobre o sensor de uma máquina fotográfica e o que acontece entre o momento de premir o botão disparador e o fecho do obturador, quero ficcionar sobre o lado sensorial e fantasiar sobre a possibilidade de um sensor ser muito mais que um registador de luz passada através de objetivas que transforma essa informação recebida em dados digitais.
Tudo teria de se iniciar no momento de aquisição do equipamento fotográfico. Para a minha intenção de ser o sensor de uma máquina fotográfica, forçosamente este tem de ter vida e opinião própria e poder de interferir no processo criativo do fotógrafo. Vislumbro o sensor a ser vendido separado do resto do equipamento fotográfico. No momento de optar por um sensor, um teste entre fotógrafo e sensor deveria ser feito por forma a aferir a compatibilidade entre ambos. Tem de haver a garantia de que existe uma probabilidade elevada de afinidade. Usando a terminologia Tinder, um match entre ambos superior a 85% de compatibilidade teria de ocorrer.
Passado o teste da compatibilidade, fotógrafo e sensor teriam de ter a habilidade de desenvolver uma compreensão mútua das intenções um do outro. O fotógrafo necessitaria de entender as capacidades e limitações do sensor, enquanto este poderia aprender a interpretar os desejos e estilos do fotógrafo. O relacionamento entre ambos poderia impulsionar a evolução da tecnologia fotográfica. A preocupação, para as marcas, deixaria de ser o “número megapixels” e passaria a ser a inteligência do sensor e a sua capacidade de adaptação ao fotógrafo, permitindo assim uma interação mais íntima com este.
Com esta relação a ter tudo para ser proveitosa, ainda que me pareça utópica para os próximos anos, existem questões morais que teriam de ser afloradas e regradas. Ora vejamos. Falando de egos. Sendo o sensor uma tecnologia viva, quem seria o autor moral da fotografia? Afinal cada um iria querer receber os louros desta parceria…
Iria pairar sempre no ar o que aconteceu com a famosa imagem de Capa, “The falling soldier”, onde persiste a dúvida sobre a autoria da mesma? É importante notar que é uma questão ética complexa e que pode variar de acordo com as circunstâncias específicas de cada situação. Independentemente da influência do sensor, o fotógrafo provavelmente ainda seria considerado o principal autor moral das imagens, a menos que houvesse um arranjo contratual ou legal que especificasse o contrário. Para reflexão este ponto…
Na versão romântica desta ficção, imagino o florescer de uma aliança sensor-fotógrafo, com ambos em perfeita comunhão. Uma verdadeira relação de amizade e cumplicidade seria estabelecida. Ambos iriam dar eco às suas emoções, cada um à sua maneira, contribuindo para uma criação que fosse ao encontro aos anseios de ambos. A colaboração entre ambos poderia tornar-se numa forma de expressão artística proveitosa. O sensor poderia influenciar a estética das imagens capturadas, adicionando uma outra dimensão à criatividade e visão do fotógrafo.
Assim como em qualquer relacionamento, poderiam surgir desafios e conflitos entre o fotógrafo e o sensor. Questões como confiança, controle e compatibilidade estética poderiam surgir, exigindo comunicação e resolução de problemas. Teriam ambos de contratar um advogado para todas estas questões? Em suma, um sensor de uma máquina fotográfica com vida própria, adicionaria uma dimensão fascinante ao processo fotográfico, à fotografia e à própria arte em si, transformando a relação entre homem e tecnologia em algo dinâmico. Como eu costumo dizer tantas vezes, o céu é o limite.
Despeço-me lançando um desafio: o caro leitor acredita que as ideias partilhadas nesta reflexão futurista, bem ao estilo de Philip K. Dick, podem ser possíveis num futuro próximo? Com o evoluir da IA, haverá espaço para sensores e máquinas fotográficas daqui a alguns anos? Vamos aguardar as cenas dos próximos capítulos.