“Numa sociedade mantida pela mentira, qualquer expressão de liberdade é vista como loucura” – Emma Goldman
A capacidade do ser humano de agir, pensar ou se expressar sem opressões ou qualquer tipo de repressão tem sido uma das grandes lutas da humanidade ao longo dos tempos.
Independentemente de crenças religiosas, cor ou género, a luta pela liberdade une os povos e é, efetivamente, um dos bens mais preciosos que o ser humano possui. Geração após geração, tantos lutaram e continuam a lutar em prol dela, muitas vezes com o sacrifício da própria vida, para que essa tal de liberdade seja uma realidade.
Celebraram-se este ano, precisamente, 50 anos do fim de um regime que oprimiu todo um país durante demasiados anos e o mergulhou numa guerra sem sentido, em que a História se encarregou de comprovar que nada de positivo trouxe ao país. Pelo contrário, cavou um fosso, a vários níveis, demasiado grande para o resto da Europa. Foi num dia de abril, como tantos outros, no já longínquo ano de 1974, que a História de Portugal ficaria marcada de forma decisiva. Finalmente a nossa nação via luz ao fundo do túnel, libertando-se do punho de ferro opressor que a governava.
Já nasci em liberdade e esse é um bem precioso. Não conheço, e tenho muitas dificuldades em imaginar, outra realidade, por muitos documentários que veja, artigos que leia, porque de facto é um tema que me fascina e ao mesmo tempo me causa repulsa. Não consigo colocar-me na pele daqueles que sentiram de perto as amarras da ditadura e da repressão que secou tudo o que florescia em seu redor, ou dos que tiveram de lutar numa guerra sem sentido.
Custa-me, quando oiço comentários pouco abonatórios relativamente à forma como a liberdade aos dias de hoje é experienciada pelas pessoas. Frases como, “As pessoas não sabem dar valor à liberdade!”, expressam sem pudor alguns saudosistas da ditadura do estado novo, ou de alguns simpatizantes, sem nunca o terem vivido, desses tempos idos.
Não alinho de todo neste diapasão. Pelo contrário, revejo-me, de coração, naquilo que um dia Thomas Jefferson escreveu: “Prefiro os perigos da Liberdade ao sossego da servidão”.
A arte em regimes ditatoriais sempre foi encarada como um alvo a abater, ou pelo menos, a controlar. Durante o famigerado estado novo, a censura, sem dó nem piedade, sempre se imiscuiu em tudo o que de alguma forma pudesse ser uma expressão que representasse um desalinhamento face à ideologia dominante. Se por parte dos oprimidos, era encarada como uma forma de dar voz à sua sua luta, do outro lado da barricada, o regime sempre foi habilidoso e impiedoso no modus operandi de aniquilar toda e qualquer forma de expressão, artística ou não.
Há muitos exemplos na arte da censura realizada por parte do estado novo. Um dos mais famosos, foi sentido pela saudosa Natália Correia, quando da publicação do livro “Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica”. A música e o teatro eram igualmente duas formas de expressão artísticas sempre sob o foco da censura. A fotografia também não fugia ao jugo ditatorial.
Apenas um desvio no meu raciocínio para mencionar que precisamente por estes dias, na Covilhã, é possível ver “A censura ao teatro”, uma exposição concebida pela Companhia de Teatro de Almada e pelo Arquivo Ephemera, que depois de estar patente em Almada é agora apresentada na Covilhã, onde é possível ver a censura de que foi alvo a peça “Deus lhe pague”, do dramaturgo brasileiro Joracy Camargo. A exposição expõe os inúmeros cortes de que os textos da peça foram alvo, de tal forma que a sua representação em palco era um verdadeiro desafio.
Passados 50 anos, existe liberdade. Ponto final! Mas é preciso mais! Há que ser resiliente e não deixar o conformismo vencer. A liberdade está dentro de cada um de nós. Há quem prefira viver em ditadura do que viver em liberdade. É a diferença entre a luz e a escuridão. É preciso o ser humano ser livre em todas as facetas que o significado de liberdade aporta. Por vezes livres de nós mesmos, dos medos, tormentos e incertezas que teimam em toldar a razão, não permitindo algo tão simples, como cada um ser igual a si próprio, com os seus defeitos e virtudes. A revolução para alcançar essa liberdade está dentro de cada um.
A fotografia tem-me mostrado essa faceta. Não poucas vezes denoto em pessoas que conheço na fotografia o medo pela liberdade. A fotografia e a arte, de uma forma geral, têm de ser encaradas de forma livre e como algo prazeroso para quem cria. Fotografar condicionado limita a liberdade do Eu artístico. Foi por essa liberdade, que tantos e tantos artistas, ao longo da história, ousaram enfrentar a sua ausência. Criaram-se movimentos, revoluções artísticas foram feitas e hoje, nos principais movimentos artísticos, privilegia-se a liberdade de expressão, desprovida de ditaduras. Aceitar viver a arte condicionado não é mais do que promover a autocensura e edificar um muro, que tolda a forma como cada artista se deve expressar. Arte tem forçosamente de ser um veículo único de expressão artística, sem condicionalismos.
É por essa liberdade que eu luto na minha fotografia. E a propósito das celebrações dos 50 anos de um dos dias mais bonitos da história deste velhinho país, lembrei-me de escrever sobre liberdade e de uma experiência vivida há pouco tempo, em que enquanto fotógrafo, permiti a mim próprio questionar a minha liberdade, neste caso a de expressão.
Tudo começou no dia em que partilhei com um amigo uma imagem de uma saída fotográfica em que ambos fomos fotografar. Após alguns meses dessa imagem marinar no meu disco rígido, algo comum em mim, resolvi finalmente editá-la. Entre alguns ajustes e retoques, o resultado final ficou, no mínimo, obscuro. A atmosfera daquela imagem não refletia exatamente o momento experienciado. Estava mais misteriosa, sombria e mística. Eu gostei do resultado!
Como competia, mostrei em primeira mão a esse amigo, que meses antes tinha partilhado comigo aquela manhã verdadeiramente mágica, envolta em nevoeiro.
O seu comentário, ao visualizar a imagem, foi peculiar: “Não estava assim o ambiente naquela manhã. Esta versão está muito mais dark do que o ambiente que encontrámos”, respondeu.
A insegurança apoderou-se de mim. O meu Eu artístico ficou vulnerável. A ditadura vigente e comum no mundo atual, em que a opinião de terceiros é uma condicionante, venceu. Felizmente o diálogo não ficou por aqui…
Retorqui “Exagerei?”.
A mensagem recebida como resposta nunca a esquecerei: “Na arte, o exagero é inspiração”. Agradeço ao Tiago Mateus, pelo seu contributo neste caminho constante da procura pela minha verdadeira liberdade artística, desprovida de censura, nem que seja aquela criada por mim próprio…