Texto publicado originalmente na revista Perspectiva de Novembro de 2022
“Dentro de nós há uma coisa que não tem nome, essa coisa é o que somos.” – José Saramago
Desde o nosso nascimento, mais tarde ou mais cedo, seremos contemplados com um ou vários rótulos. Independentemente do tipo de fator que possa estar na sua origem, a sociedade não se inibe de os colocar e vivemos no nosso dia-à-dia com eles, ainda que de forma omnipresente. Falar deste tema na primeira pessoa obriga-me a uma viagem no tempo, mais precisamente à adolescência, que representa para mim uma fase de aprendizagem e que teve um papel fundamental na minha formação e preparação para a vida adulta.
Lembro com saudade os idos anos no ensino secundário. É o período em que desperto para as artes. Ainda que de forma ténue, começa-se a manifestar o gosto pela fotografia. As “point and shoot” de filme faziam as delícias nas férias de verão.
A pintura também irrompe na minha vida e relembro saudosamente as tardes passadas a observar a mestria com que um velho amigo da família dava vida a telas através das suas pinceladas, alimentadas aqui e acolá, pela sua colorida paleta que mais parecia um arco iris, tal o emaranhado de cores que por ali pairavam. Dai a ver as primeiras pinturas de Monet e Van Gogh, foi um pequeno passo.
No que às artes diz respeito, a música tem um papel predominante nesta fase. Eram os loucos anos do vinil e das cassetes. As compras e trocas destes artefactos entre amigos, eram uma constante. Ao contrário dos tempos de hoje, seguir as últimas tendências musicais e os últimos lançamentos discográficos, era um desafio. Nunca me pude queixar. Um familiar, que à época, passava os seus tempos livres como locutor numa rádio pirata na região da grande Lisboa, fazia o favor de me manter a par das novidades mais recentes.
Lembro o ano de lançamento do majestoso “Joshua Tree”, que me abriu as portas para os hoje gigantes irlandeses U2, ainda à procura do seu lugar ao sol. É também neste período, através de um daqueles amigos de infância que ficam para a vida, que, por assim dizer, tropeço na chamada música pesada. Vulgo Heavy Metal, à boleia dos britânicos Iron Maiden.
À medida que ia progredindo na escola, e a esta distância facilmente o identifico, ainda que inusitadamente, o meu grupo de amigos era cada vez mais segregado. Tirando meia dúzia de colegas de turma, as pessoas com quem passava a maior parte do tempo livre entre aulas, eram jovens, que tal como eu, ouviam o mesmo estilo musical. A dita música pesada. Passávamos horas a falar das nossas bandas preferidas e a debater temas triviais sobre cada uma delas. À época, era fascinante.
Contudo, é neste preciso momento que pela primeira vez na vida – a inocência da idade assim o induz – que tenho um rótulo! Não estampado em alguma parte do meu corpo, nem sussurrado ao ouvido por alguns dos meus amigos, mas que pairava no ar. Era “metaleiro”. A música que ouvia, a forma como me vestia e o círculo próximo de amigos não deixava margem para dúvidas aos demais. No fundo as dinâmicas interpessoais criadas naquele espaço temporal conduziam a esse tal rótulo. A sociedade não perdoa. Nada que incomodasse. Ao longo da vida, outros foram aparecendo.
Foi assim quase até ao final do ensino secundário. A música pesada, essa e até aos dias de hoje permanece. O rótulo desapareceu na surdina. Sem avisar. Tal Dom Sebastião, em dia de nevoeiro. O motivo do seu desaparecimento foi simples. Mudança de indumentária. Temos por hábito avaliar a capa do livro e o conteúdo é esquecido.
No caminho percorrido até aos dias de hoje enquanto fotógrafo amador, o cenário é ligeiramente diferente. Nunca estive à espera de receber um rótulo dos demais. Eu próprio assumi as despesas e, de forma orgulhosa, sempre me auto rotulei e contínuo a fazê-lo, mediante as fases que tenho vindo a passar na fotografia. Alguns desses rótulos com nomes mais ou menos pomposos, de acordo com as modas vigentes. Logicamente sempre em redor do espectro da fotografia de paisagem natural ou de natureza. A minha grande paixão. É onde me sinto bem. É onde gosto de estar. É onde se identifica grande parte do meu trabalho fotográfico.
Acima desta paixão há algo maior e imune a qualquer rótulo: o meu amor incondicional pela fotografia. Aprecio-a enquanto forma de arte e de expressão artística sem estar a olhar ao género. Não sou fundamentalista. Qualquer género fotográfico me cativa desde que uma imagem reúna, aqueles que são para mim, os ingredientes necessários para tal. A sua forma, cor e sentido estético, realçando o belo do motivo com uma abordagem criativa. É o meu desafio enquanto fotógrafo. É o que me dá gozo. Quando alguém expressa do ponto de vista visual a alma e essência daquilo que os olhos veem apimentado com o quebrar e transpor da ténue barreira invisível que separa tudo o que atrás mencionei do mero registo documental. Desta forma, soltam-se as amarras da “obrigatoriedade” de retratar o real. Quando vislumbro estes fatores reunidos numa imagem, para mim, o género, a categoria, como quiserem chamar, não é relevante. Fala mais alto o gosto pela boa fotografia.
Este raciocínio, leva-me a outro ponto que passo a partilhar. Ao longo dos anos sempre tive cuidado na hora de divulgar as minhas imagens. Fosse na minha página pessoal, numa rede social ou mesmo entre amigos. O motivo é simples. Algumas das muitas imagens que habitam o meu catálogo fotográfico não se encaixam no rótulo que fui criando e desenvolvendo ao longo dos anos. Não porque nessas tais imagens não tenha no momento de fotografar tentado incluir todos os ingredientes, fundamentais para mim, para que o resultado fosse do meu agrado. Nada disso. O motivo é outro.
A título de exemplo, haveria outros. Em 2007 apaixonei-me pelo continente asiático. Das várias viagens que me levaram a esse continente, poucas foram as imagens que viram a luz do dia e por conseguinte partilhadas. No meu íntimo e em consciência iria ultrapassar a fronteira aceitável e delimitada por um rótulo. O tal da fotografia de paisagem natural ou de natureza. Esse receio latente é por demais evidente. Juntar tais imagens ao meu portfólio iria desiludir a minha plateia, habituada a uma determinada linha orientadora e acima de tudo, desiludir-me a mim, por não seguir a minha imagem de marca.
Se as irei partilhar no futuro? Provavelmente não. Mas essa tomada de posição prende-se efetivamente a uma não identificação atual tão profunda e sentida com essas imagens produzidas há um par de anos, do que propriamente receio de sair do âmbito de determinado campo na fotografia com medo de desiludir seja quem for. A minha visão sobre o tema mudou.
Este é um assunto alvo de reflexão. A questão de fundo é pertinente e controversa entre esta grande família que são os fotógrafos espalhados por esse mundo fora. As questões que pairam no ar – e são muitas – geram controvérsia. Podem ser inclusive fraturantes.
O dever de continuar a apostar num rótulo construído anos após ano e não sair desse fio condutor ou em sentido inverso, mostrar mais que uma vertente na fotografia ou até mais que isso, seguir o instinto? Será atingido um nível de excelência num determinado género ao enveredar por ser um fotógrafo multidisciplinar? Quais os ganhos e/ou perdas ao assumir essa faceta?
Menciono apenas algumas das questões. Outras certamente poderiam ser equacionadas.
O que não pode suceder, parece-me a mim e até sob pena de estrangular o próprio processo criativo de cada um, é a inibição de fotografar aquilo que se quer e quando se quer e deixar que vínculos estranguladores associados a determinados rótulos imperem. Temos sempre em primeira instância, de ser a nossa voz da consciência e fiéis ao nosso interior. Não há nada de mais genuíno e verdadeiro que o nosso eu. A nossa essência. Ao ser esse o desejo de cada um, afugenta-se a pressão de fotografar sempre sob o mesmo desígnio. O gosto pela fotografia deve manter-se inabalável e ser sempre, como referido anteriormente, o bem maior. Teria Fernando Pessoa se sentido realizado enquanto escritor, se não tivesse dado vida, alma e distintas personalidades a cada um dos seus heterónimos?