Texto publicado originalmente na coluna Convergências da revista de fotografia .Perspetiva, nº 12
“A criatividade é a inteligência a divertir-se.” – Albert Einstein
Minuto após minuto, segundo após segundo, o tempo avança. Os altifalantes da Gare do Oriente anunciam a sua partida em breve. Última chamada, pode-se ouvir. Na plataforma de partida, a azáfama típica de quem o aguarda, a ele, que repetidamente se aventura a cruzar o país de lés a lés. Corpos que se cruzam e se acumulam. Mirones que entre cigarros observam os demais. E ele, em silêncio, apenas aguarda. Na hora marcada, avança, rumo ao seu destino. O meu, seria a cidade do Porto. Sempre gostei de andar de comboio. Não aqueles que proliferam no centro da cidade e que apenas são pretexto para um vaivém entre o centro e a periferia. Gosto de andar de comboio em viagens longas. Transporta o meu imaginário para filmes e paisagens icónicas. Os primeiros quilómetros desta viagem nada revelam, apenas o vislumbre de uma selva de pedra que teima em crescer ano após ano alargando para lá do horizonte os limites da nossa capital.
Deixo-me levar na oscilação deste gigante de ferro, que ondula ao sabor do seu movimento natural entre carris. Aqui e acolá sinto-me molengão. Em certos momentos, os olhos cerram-se. Mais um solavanco e estou de novo acordado. O dia está solarengo. A temperatura teima em baixar. É um daqueles típicos dias de outono que tanto gosto, onde o frio e o sol se fundem. Longe vão os dias da roupa mais leve e fresca. Felizmente, por estes dias, o sol tem dado um ar da sua graça e ao trespassar pelo vidro toca-me o rosto com um ténue calor. Não que me sinta gélido, mas sabe bem. É aconchegante.
À medida que a viagem avança, também o sol vai descendo em direção à linha do horizonte. Algures no meio da viagem, os últimos raios de sol fitam a paisagem. Moldam-na. Tornam-na tridimensional. As zonas escuras, que não recebem estes últimos rasgos de luz, predominam na paisagem, no entanto, a pouca luz incidente é a que causa magia. Aqueles efémeros instantes que qualquer comum mortal tanto aprecia. Um deleite para o olhar. Para o artista visual, a luz é a sua alma. Enquanto saboreio estes suaves momentos, embarco em outra viagem. Um regresso saudosista que faço imensas vezes. Ali estou eu novamente preso a fugazes momentos da minha adolescência, mais concretamente a um velho amigo dos meus pais. Nunca tive, infelizmente, oportunidade de lhe dizer, que foi ele que escancarou em mim as portas das artes visuais, neste caso a pintura. Não que ele fosse um predestinado nesta forma de arte e, a bem da verdade, pouco importa, mas despertou em mim o gosto e a curiosidade que anos mais tarde haveria de me guiar à fotografia.
Passava horas a admirar a mestria com que pincelava as suas telas. Fossem trabalhos encomendados ou obras da sua imaginação. Nesses tempos, ainda que timidamente, aventurei-me na tentativa de pintar. Algo fugaz no tempo. Inocentemente, sabia que ainda não tinha chegado o momento, fosse de pintar ou de me expressar em qualquer outra forma de arte. Foram precisos mais de 10 anos e outra consciência para encarar novamente as artes visuais e desta feita com o acrescento da necessidade de expressar o turbilhão de emoções e sentimentos que me percorriam a alma e que forçosamente tinham de ver a luz do dia. De regresso à viagem de comboio, uma vez que é a ponte de ligação de toda esta reflexão aqui partilhada. Naquele fugaz momento, em que os últimos raios de sol incendiaram a paisagem, despertou em mim uma tremenda vontade de os registar.
Normalmente socorro-me da máquina fotográfica para o fazer. Desta vez foi diferente. Não desejei assinalar aquele momento num ficheiro composto por zeros e uns, não! E foi precisamente esse desejo que me deixou surpreso. Influenciado pelas memórias que me tinham assolado o pensamento, senti em mim o anseio de transpor aquele momento efémero para uma tela. Dar-lhe vida através da pintura.
Aquele regresso à minha adolescência não era a única explicação para este desejo. Creio que é algo mais profundo. Não quis encontrar explicações para esta vontade. Ao invés, agarrei-me a esta intenção e refleti. Racionalmente e sem qualquer formação na pintura, não poderia reproduzir aquele momento para uma tela. O resultado seria, no mínimo, catastrófico, mas por certo a alma sairia reconfortada.
Este acontecimento marcante não foi mais do que o despertar da minha consciência, adormecida, mas que lentamente tem sentido um chamamento que ecoa em mim para a pintura. Objetivamente, em boa parte do meu trabalho fotográfico mais recente, é evidente a tentativa clara de colar a fotografia à pintura, sobretudo em temas abstratos, recorrendo a técnicas fotográficas inovadoras que permitem lançar a dúvida sobre o resultado obtido.
Até há uns anos, a fotografia apenas captava o que nos rodeava, em caminho contrário à pintura, que sempre permitiu criar algo a partir do imaginário do artista. Aos dias de hoje, a fotografia também assume esse papel, assente na evolução tecnológica, permitindo que o artista crie algo resultante da sua imaginação, suportado, muitas vezes, em diferentes estilos fotográficos, onde a técnica fotográfica associada ao processo de edição permite o alargar do horizonte da criatividade. Novos caminhos se revelam. Com meios diferentes para alcançar o seu fim, a verdade é que atualmente do ponto de vista da expressão criativa, tanto pintura como fotografia oferecem uma panóplia variada de oportunidades.
Atualmente vêem-se tantos e tantos fotógrafos a usarem técnicas fotográficas que produzem um resultado semelhante a uma pintura. Eu próprio tento essa aproximação como tive oportunidade de referir. Inclusive, em alguns casos, chega a ser difícil distinguir estas duas formas de arte. A linha que as separa é em algumas áreas cada vez mais ténue. A título de exemplo, a primeira vez que vi uma imagem do fotógrafo espanhol Pep Ventosa, e que, devo dizer, me impressionou verdadeiramente, questionei-me se não seria uma pintura que tinha diante dos meus olhos.
A mesma sensação se apoderou de mim ao ver imagens da fotógrafa polaca Marta Leszczyk. Outros exemplos existem. Em ambos os casos, questiono, o porquê desta abordagem e não o caminho da pintura, quando é evidente o gosto de ambos por essa forma de arte, ou pelo menos, o resultado que pretendem atingir. Acredito que esta abordagem, além do próprio gosto pessoal, se deva também ao facto de vivermos uma fase em que a fotografia documental, nas mais diversas áreas, é o banal. É tempo de inovar. Fazer coisas, como agora se diz, “fora da caixa”. Provavelmente, daqui a uns anos, voltaremos ao chamado “banal” como algo diferenciador.
O sumo dos acontecimentos atrás descritos levaram ao emergir de uma questão: porque nunca segui o caminho da pintura? Talvez alguns dos que lêem estas linhas se revejam nesta questão. Que motivações, mais ou menos racionais pesaram para uma escolha em detrimento de outra. O racional e o irracional unem-se. Pode ser evocada a preferência por uma forma de arte em detrimento da outra. O atingir de resultados mais céleres certamente que terá tido o seu peso. Também serve de atenuante a curva de aprendizagem ser mais rápida na fotografia e, por fim, também como fator decisivo, incluir nesta equação o argumento da paixão e dedicação a algo. A resposta pode ainda ser mais simples e menos complexa – gostar de aproximar a fotografia à pintura, enquanto produto final e não ter qualquer interesse em pintar e aprender a sua técnica. Honestamente, não sinto necessidade, ao invés de outros momentos do meu percurso fotográfico, de ter uma resposta clara e objetiva que me guie em determinado sentido. Como é reconfortante essa sensação.
Se durante anos a fio ignorei este tema, aos dias de hoje faz-me refletir. Na longa viagem de comboio até ao Porto, de facto dei comigo a pensar que talvez a minha opção pela fotografia estivesse relacionada com o seguir o caminho mais fácil face à pintura. A meu ver, esta espontaneidade de querer pintar, ainda que à boleia de uma velha memória, não é mais do que o reflexo de que não existe amor como o primeiro, e mais tarde ou mais cedo, ele irá irromper de novo nas nossas vidas, neste caso, na minha.
Terminada a viagem era hora de regressar ao corrupio do dia a dia, onde sou engolido pelas mais variadas distrações. O assunto adormeceu, mas não caiu em esquecimento. Passado uns dias, resolvi assistir a um pequeno documentário sobre a fotógrafa escocesa Margaret Soraya, para o canal de Youtube do também fotógrafo Sean Tucker. Para quem não conhece, recomendo vivamente dar uma vista de olhos e assistir a alguns dos seus vídeos.
A história desta fotógrafa é, por sinal, uma cronologia temporal de uma vida e dedicação à arte, diga-se, maravilhosa. Retrato nas linhas seguintes o que mais chamou a minha atenção. No referido documentário, a fotografia surge na sua vida precisamente através de duas grandes paixões na arte à época: pintura e desenho.
A fotografia não era mais que uma ferramenta secundária, que auxiliava esse seu grande amor. No final, e por diversos motivos, foi a fotografia que ficou e que perdurou no seu percurso e a fez abraçar de corpo e alma esta forma de expressão artística em detrimento da pintura e do desenho. A passagem marcante do documentário foi quando ela refere que a determinado momento da sua vida soube que iria voltar a pintar. Que coincidência! Atualmente vivemos num mundo onde desejamos que tudo aconteça de forma ágil e que o espaço temporal entre ter uma ideia e a sua materialização deva ser célere.
No caso dela decorreram 10 anos. Houve da sua parte um processo de amadurecimento desta vontade emergente e fez o regresso à pintura em consciência e no momento que considerou o adequado face às vicissitudes da sua própria vida. As pinturas são inspiradas nas suas fotografias e não há por parte da própria uma tentativa de reproduzir aquilo que fotografou. São apenas a base. O restante vem de dentro de si. É o deixar a criatividade fluir. A fotografia continua a ser a sua grande paixão, sendo que uma coisa não anula a outra, pelo contrário, complementam-se no sentido da realização pessoal e do expandir a sua criatividade para lá das fronteiras da fotografia., onde as suas fotografias ganham preponderância numa nova interpretação artística através da pintura.
Estes acontecimentos partilhados nestas linhas têm sido reveladores. Acredito que existem momentos na vida que não são obra do acaso. Há um propósito em tudo o que acontece, faltando por vezes a clarividência necessária para entender os sinais que são passados. Ainda em fase de digerir tudo o que tem acontecido emerge em mim uma crescente necessidade e vontade de pintar. Não poderei falar em regressar à pintura, porque foi algo tão fugaz que considero uma ousadia falar num regresso. Contudo, e com o devido tempo, sinto que vou dar corpo e alma a esse desejo, sem pressas e, acima de tudo, cada vez mais ciente de que há um tempo para tudo, e ao fazê-lo estou a ir ao encontro do meu eu artístico. Afinal, como escreveu Pessoa, “a minha arte, é ser eu”!
Desejo a todos os leitores da revista .Perspetiva um feliz Ano Novo.