É noite de lua cheia, mitos e crenças pairam no ar. Algumas nuvens envolvem o astro, que lá no alto – misterioso e sobranceiro -, cativa e hipnotiza o olhar com o seu misticismo. A luz, que dele emana, ilumina a pequena praia de Perequê, em Guarujá – São Paulo. Nas suas areias, deito-me e encontro o conforto necessário para saborear todo aquele mar de estrelas, que se precipita perante o meu olhar e onde a lua se encontra mergulhada. O som bucólico e cadenciado do mar ecoa em mim, neste momento de contemplação do espaço celeste. Sopra uma leve brisa, e é entre pensamentos de vida alienígena, que observo as silhuetas dos coqueiros e das pequenas embarcações que repousam na baía. Igualmente em forma de silhueta, um casal de namorados encontra-se sentado no limite do pontão que entra mar adentro, quiçá aproveitando a envolvência para juras de amor eterno. É quando ainda não se vislumbra no horizonte o crepúsculo que antecede o aparecimento de outro astro, o rei, que observo vultos que se movimentam pela praia. A pequena lota ali localizada é o seu destino. Há que ultimar os preparativos para a ansiada chegada das embarcações saídas no dia anterior, para mais um dia de faina. Longe do centro turístico de Guarujá, o mar é a esperança de muitas famílias que por aqui enfrentam as agruras da vida.
O escuro profundo da noite vai-se desvanecendo de forma suave, enquanto os ponteiros do relógio avançam. Um bando de gaivotas avista-se ao longe. É o sinal que falta. As embarcações estão a chegar. As primeiras que aportam nas areias da praia, rapidamente são puxadas para fora da água. A monotonia deu lugar à agitação. Todos querem colaborar. Muitos corpos, suados e em movimento, aglutinam-se na pequena lota. No meio da azáfama e de um emaranhado de braços, cada um sabe a tarefa que lhe está reservada. No meio do caos à ordem. Em poucas horas, o peixe e marisco oriundos das profundezas do oceano com a bênção de Iemanjá, estarão disponíveis em muitos dos restaurantes da região. Os clientes, ávidos por este tipo de iguaria, estão prontos a desembolsar valores avultados para os ter no seu prato.
Já o sol ia alto, quando decido sentar-me num dos muitos botecos localizados em frente ao mar. É sobre um calor tórrido e enquanto uma dúzia de ostras me satisfaz o apetite, que converso com alguns dos habitantes da vila sobre as vivências e experiências de cada um. Observo o comportamento das crianças na rua. A cada carro estacionado, é dada a garantia de segurança total do mesmo a troco de um R$1. É quando conheço o Paulo, um carioca que há muito vive em Perequê. Fala de como a vida tem sido dura para com ele e confidencia-me que entre vários empregos e amores falhados, já calcorreou meio Brasil na busca incessante pela felicidade. O seu rosto, enrugado e seco, não deixa disfarçar como a vida tem sido dura para com ele. O seu olhar, não sendo triste, torna-se melancólico de cada vez que revisita momentos passados da sua existência. A cada palavra que soletra, fico na dúvida se a água que lhe escorre pelo rosto é suor – consequência do muito calor que se faz sentir -, ou se são lágrimas que espelham a sua alma. Hoje mais calmo e sereno, o avançar da idade assim o exige, passa os seus dias entre o mar e o restaurante onde trabalha. Antes de ir embora e com uma nova cerveja na mesa, sou surpreendido por uma oferta do meu mais recente amigo: um robalo. É no meio de alguma emoção, provocada por um gesto simples mas bonito, que me despeço do meu mais recente amigo.
Na praia, tudo agora se encontra sereno. Na lota não se vê vivalma. Os urubus amontoam-se na areia, em busca dos despojos da faina ali esquecidos. As pequenas bancas de venda de peixe, que se encontram na beirada da estrada, estão praticamente vazias. Já pouco resta da abundância que ali existia nas primeiras horas do dia. A venda foi proveitosa e sente-se isso no ar leve e sorridente dos vendedores. Mais um dia de luta vencido. O relógio marca sensivelmente 14 horas. É hora de regressar. Tal como os demais, pego na bicicleta e faço-me à estrada sobre um calor sufocante. Os 3 quilómetros, que me separam da praia de Pernambuco, são percorridos a refletir nos acontecimentos da manhã. O ritmo de vida das pessoas e os seus objetivos enquanto seres humanos é igual em qualquer parte do planeta, apenas muda a realidade sociocultural e financeira onde cada um está inserido, gerando expectativas diferentes da definição de bem-estar. Depois de muitas viagens por diferentes países, chego sempre à mesma conclusão: por muito deslumbrante que seja uma paisagem ou um monumento, os verdadeiros ensinamentos e mais-valia advém do contacto com as populações.
É na praia de Pernambuco, que cumpro o meu ritual diário e recupero algumas das forças. Um mergulho para refrescar, enquanto na Barraca da Vânia é preparada a bebida de sempre: uma caipirinha de lima e maracujá. Sento-me na cadeira e regresso às minhas leituras, onde esfolheio as últimas páginas de um clássico do início da década de 80: Os Filhos da Droga.