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O doce sabor da fotografia analógica

Outubro 29, 2020

Havia vários anos que aquela velha gaveta não era aberta. Fechada com ela, memórias e vivências de tempos idos. No meio de antigas fotografias, espalhadas, que quase a cobrem por completo, fito no imediato a velhinha Canon AE-1. Ali estava ela, reluzente, quando a pouca luz que trespassa pela gaveta entreaberta incide nas zonas prateadas do seu sólido corpo. Antes de lhe pegar, recordo fragmentos da minha vivência por ela presenciados e que ajudou a perpetuar, escrevendo-os com luz. Entretanto, esse papel de principal guardiã de memórias, das minhas, perdeu-o. Não por vontade própria, antes porque o preço da evolução é impiedoso.

Não os sei precisar, mas vários anos haviam passado desde a última vez que lhe tinha dado uso, adiando dia após dia o desejo de voltar a sentir o doce sabor da fotografia analógica. O filme, esse havia sido adquirido uns dias antes e a preto e branco, como previamente tinha decidido. O valor de aquisição foi substancialmente mais caro do que há uns anos atrás. Nos dias que correm, a fotografia analógica é catalogada como “vintage”. Essa almejada fama, associada à diminuição da procura e da respetiva produção de artigos e acessórios, traz consigo a inflação de preços.

Fotografar em analógico é um ritual no qual sempre me fascinou toda a preparação prévia que antecede premir o botão disparador. Colocar o filme, rodar o botão do ASA (atualmente ISO na fotografia digital) para o valor coincidente com o do filme adquirido, são apenas algumas das etapas que fazem parte desse dito ritual. O ponto alto sempre foi o avançar do filme e o seu som tão característico nesta câmara em particular. Por fim e quando o filme terminava, este era rebobinado de forma manual, numa ação que demorava meia dúzia de segundos. A angústia, o drama e o desespero vinham logo a seguir. Entre o entregar o filme para revelação e a obtenção do resultado final, podia haver um intervalo de vários dias. Essa espera consumia qualquer um por dentro, como um fogo que arde sem se ver. Onde será que já ouvi isto?! E o ruído?! Hoje considerado um vírus de efeitos nefastos na fotografia digital, tempos houve em que havia quem comprasse filmes com a propositada intenção de ter esse charmoso e requintado efeito no resultado final das suas imagens. Como diria o saudoso Fernando Peça: e esta hein?!

Sabiamente sempre ouvi dizer que mudam-se os tempos, mudam-se as vontades e tudo o que atrás foi escrito, não são mais que um conjunto de ações, conceitos e princípios que hoje se desvanecem na memória de quem fotografou com câmaras analógicas e difíceis de entender por parte de quem só conhece a realidade da fotografia digital. No presente não tenho a pretensão de voltar à fotografia analógica. Poderia apontar vários motivos para não o querer fazer, mas esse não é o objetivo deste artigo. Garantidamente posso afirmar que esta velha câmara não voltará a estar tanto tempo sem ver a luz do dia. Nas divisórias da mochila que transporta todo o meu equipamento fotográfico, encontrei um canto para aconchegar a minha velhinha Canon AE-1. Acompanha-me para todo o lado, seja em lazer ou trabalho. A sua missão, ao contrário de outrora, é tirar uma ou duas fotografias por cada local visitado. O filme que normalmente não durava mais que um par de horas, hoje tem uma longevidade superior a dois meses. No final, as melhores imagens são recebidas em apoteose, já devidamente emolduradas, pelas paredes lá de casa, como se de um troféu se tratasse.

E assim termino mais esta partilha fotográfica. Desta feita, uma pequena viagem ao baú de memórias a recordar os tempos da fotografia analógica, e ao início desta caminhada pelo apaixonante mundo da fotografia. Em analógico ou digital, o desafio é nunca deixar padecer esta enorme paixão.