Texto publicado originalmente na revista Perspetiva de Janeiro de 2023
“A única coisa que me espera é exatamente o inesperado.” Clarice Lispector
O estudo das organizações nunca foi um tema que despertasse em mim particular interesse. Recentemente e por questões académicas, um artigo com um título sedutor veio engrossar a já de si extensa lista de leituras em atraso. Vários são os livros e documentos empilhados no fundo da secretária à espera que chegue a sua vez.
Talvez pelo título, confesso que fiz batota. Alterei a prioridade de leituras e um artigo que deveria repousar no fim da fila para ser lido, repentinamente, seria o primeiro. All that Jazz – Improvisação Organizacional. Este é o título do artigo. Sugestivo, na minha opinião.
O foco central do artigo é a improvisação, algo tão presente no jazz, estabelecendo um paralelismo entre o género musical e o mundo das organizações. O autor atreve-se a ir um pouco mais longe e aborda as implicações que uma abordagem de improvisação traria como benefício em distintas áreas da atividade organizacional em contraponto com a gestão tradicional, assente em conceitos teóricos provados de forma empírica. A improvisação permite, na realidade da gestão de organizações, a tomada de decisões com base na intuição espontânea, permitindo a estas lidar de forma mais efetiva com situações complexas do seu dia a dia. Por outras palavras, o planeamento dá lugar à espontaneidade.
Improvisação, é precisamente a palavra que liga esta pequena introdução ao que tenciono partilhar nas próximas linhas. A esta, adiciono uma outra, que será útil ao longo deste texto. Experienciação.
Quem tem acompanhado os artigos que tenho escrito para a “Perspectiva” já percebeu que escrevo sempre na primeira pessoa. Gosto de lançar um tema, enquadrá-lo no meu trajeto fotográfico e dissecá-lo, enquanto partilho as minhas experiências, vivências e opinião.
Por certo, alguns de vós ao longo do vosso percurso enquanto fotógrafos, também se debateram com algumas das inquietudes que aqui tenho expressado. O artigo desta edição, a última do ano, não foge à regra. Seguirei a linha dos anteriores.
À luz do artigo “All that Jazz”, na sua forma e conteúdo, relembro os idos tempos de como encarava, vivia e sentia a fotografia, em contraponto com os dias de hoje. Durante muitos anos, talvez demasiados, seguia o que considero serem as boas práticas da fotografia de paisagem comprovadas de forma empírica!
O meu comportamento era semelhante a um robot. Não havia espaço nem margem para improvisos nem para experienciar e nem tão pouco ser criativo. Os robots não improvisam. Os robots não experienciam. Os robots não criam.
Tudo se iniciava, no meu processo fotográfico, por um estudo minucioso do local a fotografar. Maioritariamente passava por ver imagens de outros fotógrafos. A ida para o terreno apenas acontecia depois de um conhecimento aprofundado do local e se, reparem nas próximas palavras, as condições perfeitas, se é que isso existe, estivessem reunidas.
Daria pano para mangas debater o que são as “condições perfeitas” em fotografia. Continuando. De forma mecânica e uma vez no local, realizava as fotos que tinha em mente e regressava a casa, frustrado se não tivesse feito a “foto previamente programada”. Estes passos aqui descritos foram durante anos a fio o meu modus operandi. Inclusive, em alguns dos locais, até a coordenada exata tinha comigo do sítio onde deveria colocar o tripé.
Esta abordagem conduziu a um determinado estilo de fotografia. O enfoque era sempre em locais de rara beleza natural, que com mais ou menos arte retratava de forma documental. Fazia figas que a cada saída fotográfica as condições meteorológicas pudessem ser a cereja no topo do bolo, a conferir aquele toque diferenciador às minhas imagens. Tudo o resto, seria igual às demais.
Resumindo: os mesmos locais fotografados por tantos e tantos fotógrafos com as mesmas composições e uma fé – excessiva – na meteorologia.
Algumas vez se sentiram dentro de um escafandro? Eu nunca estive dentro de um, não sei qual é a sensação, mas acredito que seja de claustrofobia, só de imaginar. É como me sinto quando penso nesses dias. Preso dentro de algo e apenas uma pequena viseira disponível para ver o mundo exterior. Não havia espaço para olhar para os lados, nem para cima ou para baixo.
Hoje tenho a perceção de ter estado amarrado a uma filosofia fotográfica que castrava de forma drástica qualquer linha de orientação mais criativa. Não havia espaço para o imprevisto, algo que aos dias de hoje é tão desafiante para mim.
Para condimentar um pouco mais este artigo, vou adicionar um ingrediente que adoro: a partilha de experiências vividas. Não me querendo repetir, uma vez que por várias vezes o referi em outros artigos para esta revista, sou um apaixonado pelo continente asiático.
Das várias vezes que visitei a Ásia, sempre regressei a casa feliz e de coração cheio. As paisagens, as pessoas, as vivências, os aromas e os sabores continuam a popular os corredores da minha memória como se tivessem sido experienciadas ontem.
E assim chego ao próximo ponto. Tenho fotos do Mount Bromo, do Kawa Ijen ou do Kelimutu. Todos eles, vulcões de rara beleza. Cada um destes vulcões ganha um novo alento quando visitado in loco. Dada a oportunidade de visitar e fotografar estas belezas naturais únicas, apraz-me lançar a mim próprio as seguintes questões: Qual a minha abordagem fotográfica? O que improvisei em locais fotografados de forma massiva? O que tentei fazer de diferente?
A resposta a estas questões é óbvia. Em termos de originalidade e de improviso fotográfico redundaram num enorme fracasso. Logicamente que há data não via as coisas dessa forma. Hoje vejo.
A minha atual desilusão vai um pouco mais longe. Será que na verdade experienciei e tirei partido dos momentos que presenciei? Fotografia também é experienciar o que se vislumbra.
A esta distância a memória atraiçoa o que na época senti, mas questiono-me: Terei sentido o vento a bater no rosto na ventosa manhã em que visitei o Mount Bromo? Os primeiros raios de sol a aquecer o meu gélido corpo naquela fria manhã, será que senti efetivamente o seu calor? Terá o forte cheiro a enxofre que emana do Kawa Iljen sido incomodativo para mim? Contemplei de facto as 3 crateras coloridas que compõem o imponente Kelimutu? Infelizmente, a obstinação da tal “fotografia previamente planeada”, falava mais alto em detrimento de tudo o resto.
A fotografia, aos dias de hoje, é para mim muito mais do que o ato de fotografar em si. É experienciação. Existe em mim uma necessidade crescente de envolvência com o meio ambiente. Gosto de sentir, e como é boa essa sensação, que sou apenas uma ínfima parte do todo. Nesse momento, estou apto a fotografar de forma livre e desprovida de ideias pré-concebidas. Ao fazê-lo, estarei a criar espaço para que a criatividade se revele de forma natural e estarei em alerta para os imprevistos que a mãe natureza tem para oferecer.
Não há que ter receio do desconhecido. Ele é na verdade um aliado. Obriga a deixar para trás a zona de conforto, e como ela é confortável, estimulando o lado mais criativo e desapegado que existe dentro de nós. Criatividade e improviso não caminham de forma paralela, pelo contrário, complementam-se. Tal como o jazz confere ao músico uma liberdade única de expressão artística, não custa procurar e experienciar esse caminho na fotografia e fazer de cada saída fotográfica um concerto de jazz, onde a liberdade de improvisação é a palavra de ordem.
Trago comigo a crença que uma nova visão emerge, desprovida de preconceitos e, muito provavelmente, mais gratificante do que ser um mero registador documental daquilo que tenho diante dos meus olhos.
“Pensar fora da caixa”, uma expressão muito em voga nos dias de hoje, não custa. E verdade seja dita, todos nós temos a nossa caixa. Não interessa se a caixa é grande ou pequena, se é mais quadrada ou mais retangular. A tentativa de sair dela por si só, revela angústia no âmago perante tudo aquilo que é tido como um dado adquirido e que se controla de forma confortável.
Para finalizar. Escrevo estas linhas num dos dias que a chuva mais assola a cidade de Lisboa, neste final de 2022. Espreito pela janela e vejo o sol a rasgar e a emergir, de forma tímida, por entre escuras e carregadas nuvens, anunciantes de mais chuva para breve. Que este ténue raio de luz seja o farol que me continue a iluminar nesta caminhada cada vez mais no sentido da liberdade da expressão artística.
Que a minha e a vossa Perspetiva, nunca deixe de progredir. Feliz Ano Novo!